— Às dez horas em casa!
— Pai, tenho 18 anos!
Surpreso com o que podia ser interpretado como
provável contestação, ele batia o martelo:
— Dez em ponto! Nem um minuto
mais.
Chegar de volta às dez da
noite, em ponto, era arriscado. O relógio do pai podia estar adiantado e o dele
comandava a operação. Mesmo que o dele batesse com o da Matriz corria-se o
risco da interpretação. “Essa igreja! Sempre atrasada”. Exatamente igual à bola
de futebol. Na risca, ela está fora ou dentro? Depende da disposição do juiz.
Ou seja, aos 18 anos, tínhamos de chegar em casa no máximo às dez para as dez
da noite, se não quiséssemos encontrar a porta fechada. Não adiantava bater na
janela do irmão, o pai ficava acordado por algum tempo, à espreita. Dormia-se
na rua? Não, batia-se na porta, sabendo do caminhão que seria despejado em
cima, das ameaças de cortar a
mesada (no meu caso nem era mesada, ele me dava um
dinheiro de vez em quando, para um refrigerante, um sanduíche. Não que fosse
avarento, não tinha mesmo). Empregos? Numa cidade do interior, década de 50?
Que emprego? Caixeiro do comércio? E o estudo?
Não havia científico noturno
ainda. Claro que existiam permissões para se
ficar até mais tarde. Raras. Em finais de semana,
dias de baile. Chave de casa? Por que um jovem de 18 anos não tinha a chave de
casa? Não era costume, não se dava, e pronto. Parece pré-história para o jovem
de hoje, e no entanto tais coisas aconteciam
há 40 anos, o que é nada histórica e
sociologicamente. As relações pais e filhos eram mistos de respeito e terror.
Ninguém chamava o pai de você, a não ser um ou outro colega, invejado. De
qualquer modo, soava estranho, era o mesmo que um deputado
não se referir ao outro como vossa excelência, mesmo
sendo inimigo mortal. Pai era senhor. Assim
como se cumprimentava pedindo a bênção, beijando a mão.
E palavrão? Coisa de rua, de gente desclassificada, de marginal, de filho de
lavadeira. Filho de
lavadeira? Havia preconceito, de todos os lados, havia
intolerância, levava-se uma existência cinza. Quanto amigo meu levou tapa na
boca, porque o pai, ao virar a esquina, deu com o filho, de 21 anos, fumando.
Exageros? Totalitarismo? Em parte sim, em parte não.
Pode parecer ridículo, mas havia nisso um
cerimonial de civilização. Ainda que existisse animosidade, cumpria-se um
protocolo de educação, de reverência por alguém que nos colocou no mundo, deu
educação, sustentou. No fundo, eles, os pais, continuavam com ritual de
despotismo trazido pela tradição, transmitindo o que tinham aprendido. O mundo
andava devagar, não havia por que romper com o estabelecido. As coisas
funcionavam, e se funcionavam mal, não havia ainda suficiente clareza e lucidez
para quebrar normas que começavam a ficar obsoletas. Enfim, não se colocava em
questão. Era ruim para nós? Era. Uma camisa-de-força, um cerco apertado constituído
por nãos. Era bom? Era. Ali aprendemos que a vida era assim, uma
camisa-de-força,
composta por um conjunto de nãos. Tínhamos de conhecê-los, aprender
a driblá-los pela vida afora, despistá-los, superá-los com capacidade,
inteligência, esforço. Evidente que o não favorecia a mentira, a hipocrisia.
Atualmente, sorrimos, quando filhas de 13
anos nos comunicam:
— Hoje vou dar uma festinha à noite!
— Saiu um livro de educação sexual. Quem pode
comprar para mim?
— P…q…p, pô…*** grtfhun #$% trá-lá-lá!
— Podem me buscar na festa à uma hora!
Este uma é da madrugada, é claro. E quando
se vai apanhá-las, vê-se que existem meninas que ainda vão ficar até mais
tarde, porque há filhas sempre reclamando:
— Sou a primeira a deixar as festas!
Quando chegam em casa, abrem a porta,
porque têm chave. Todas as meninas de sua idade têm chaves de casa, mesadas
semanais, ficam lendo à noite até a hora que querem, contestam os pais, marcam
festas em casa, ligam o som no máximo do volume. Sabem tudo sobre sexo,
perguntam para os pais e
professores coisas que fariam um jovem — não de 13, mas de 18 —
ser expulso de casa no nosso tempo (ao menos, espera-se que não cometam erros
infantis). Namoram, telefonam sem parar, pedem aos pais um cigarro para
experimentar (e o pai, dentro da escola moderna do consentimento para não
traumatizar, não reprimir, dá).
Nossas angústias eram simples, menos
existenciais. E bem definidas. Concretas. Doíam do mesmo modo. Havia aquela intolerância,
contra a qual brigávamos. Mas nosso problema maior era o futuro, o que seremos,
o que queremos. Vão dar certo nossos sonhos? Era a grande pergunta, porque havia
sonhos. Na permissividade atual, neste final de século do sim, estas angústias
se complicaram extremamente para os adolescentes e jovens. São abstratas,
metafísicas, sem soluções, porque indefinidas,
tênues. Nossos filhos, vivendo em meio a violência e caos, são
superprotegidos, defendidos, confundiu-se liberdade com permissividade, romperam-se
os limites e eles desconhecem os nãos que poderiam torná-los mais lutadores,
preparados, até mesmo raivosos. Nem existem sonhos ou utopias, o que se quer é
ter dinheiro, status, vida confortável. O não levou minha geração a uma reação
de raiva e ao mesmo tempo perigosa. O não que nos traumatizou, nos conduziu a
dizer um sim complexo para nossos filhos. Quem sabe eles não se sintam perdidos,
sem condução, soltos no mundo, circulando sem que alguém dê um toque no cordão que
nos liga, ajudando a dizer: cuidado, aí tem areia movediça?
Nós não acreditávamos que nossos pais
sabiam. Nossos filhos acreditam que não nos incomodamos com eles, que os
abandonamos no mundo. Uma geração teve o não. A outra teve o sim. Somos felizes?
Nossos filhos serão?
(Ignácio de Loyola Brandão. Pais
& Teens, ano 1, nº 2.)
COMPREENSÃO E
INTERPRETAÇÃO
1. O texto põe em discussão a mudança de atitudes e valores que ocorreu
nas últimas décadas, opondo duas gerações: a geração de quarenta anos atrás,
quando o narrador era jovem, e a geração dos jovens de hoje. Observe o título
do texto. Qual é a geração do “sim” e qual é a do “não”?
2. Nos primeiros parágrafos do texto, o autor descreve como era a educação
familiar no passado. Nos parágrafos seguintes, compara-a com a educação atual.
Comente as diferenças nas situações vividas pelos jovens quanto aos seguintes
aspectos:
a) horário para voltar e acesso à casa após saídas à noite;
b) dinheiro dado pelos pais;
c) consumo de coisas proibidas, como cigarro;
d) forma de tratar os pais;
e) uso de palavrões na linguagem.
3. Segundo o narrador, no passado o relacionamento entre pais e
filhos era difícil e autoritário, e o jovem tinha pouca liberdade. Apesar
disso, o narrador, hoje, não vê apenas o lado negativo daquele tipo de
relacionamento. Releia estes trechos:
• “Totalitarismo? Em parte sim, em parte não.” (6º parágrafo)
• “Era ruim para nós? Era. Uma camisa-de-força, um
cerco apertado constituído por nãos. Era bom? Era.” (7º parágrafo)
De acordo com as ideias gerais do texto, explique:
a) Por que era ruim aquele tipo de educação
familiar?
b) E por que era bom?
4. Muitas vezes, o não gerava a mentira e a
hipocrisia.
a) Com que finalidade se mentia naquela época?
b) Nesse contexto, mentir era bom ou ruim?
5. Segundo o texto, os jovens de hoje sabem de muitas coisas e “perguntam
para os pais e professores coisas que fariam um jovem — não de 13, mas de 18 —
ser expulso de casa no nosso tempo (ao menos, espera-se que não cometam erros
infantis)”.
Levante hipóteses: O que possivelmente são, para o
narrador, “erros infantis”?
6. No penúltimo parágrafo, o narrador opõe as angústias dos jovens de
antes às dos jovens de hoje e afirma que, no passado, essas angústias eram mais
bem definidas e concretas. Por que o narrador vê as angústias dos jovens atuais
como mais complexas que as dos jovens do passado?
7. No mesmo parágrafo, o narrador afirma que o futuro era a grande
preocupação dos jovens: “Vão dar certo nossos sonhos? Era a grande pergunta,
porque havia sonhos”.
a) Qual é o ponto de vista do narrador a respeito
dos sonhos dos jovens atuais?
b) Em contraposição aos sonhos, alimentados pela
geração de antes, qual é o projeto da geração atual, segundo o narrador?
c) Comparada à geração atual, que qualidade o
narrador vê nos jovens da sua geração?
8. Para o narrador, “confundiu-se liberdade com permissividade”. Qual
é a diferença entre elas?
9. Ao afirmar “O não que nos traumatizou, nos conduziu a dizer um sim
complexo para nossos filhos”, o narrador revela estar seguro ou inseguro quanto
ao modo como os pais de hoje têm educado os filhos?
10.O texto põe em discussão duas formas de educar os filhos e, em vez
de apresentar respostas na sua conclusão, termina com perguntas: “Uma geração
teve o não. A outra teve o sim. Somos felizes? Nossos filhos serão?”.
a) O narrador deixa clara sua posição sobre qual a
melhor maneira de educar os jovens?
b) O fato de o texto ser encerrado com perguntas
confirma ou nega sua resposta anterior?
c) Observe o título do texto. De acordo com as
idéias gerais apresentadas pelo narrador, que sentido ele tem?
A LINGUAGEM DO TEXTO
1. No título do texto (“O não, o sim, a felicidade”) e em trechos como
“Uma geração teve o não. A outra teve o sim”, as palavras não e sim desempenham um papel que não é o de advérbio.
a) A que classe gramatical elas pertencem nessas
situações? Por que ocorre essa alteração de classe gramatical?
b) Em qual das frases abaixo ocorre o mesmo
fenômeno?
• “Nossas angústias eram simples, menos
existenciais.”
• “Este uma é da madrugada”
• “Havia aquela intolerância, contra a qual
brigávamos.”
2. Em algumas situações, o texto faz uso de linguagem figurada.
Observe estes trechos:
“[...] havia intolerância, levava-se uma existência cinza”
“[...] cuidado, aí tem areia movediça?”
Explique o sentido que as expressões destacadas
nesses trechos têm no contexto.
3. No 11º parágrafo, foram empregados sinais gráficos e abreviaturas em “P...q...p,
pô... ***grtfhun#$% trá-lá-lá!”. O que sugerem esses recursos?
Leia este cartum, de Quino:
(Quino. Humano se nace. Barcelona: Lumen, 1991. p. 32.)
1. O cartum está dividido em três cenas. Na primeira cena, um homem
está caminhando em direção ao futuro. Observe seus gestos, sua expressão física
e a linha que indica a trajetória de seus passos. O que eles significam?
2. Na segunda cena, a expressão facial e corporal do homem se
modifica. O que há em
comum entre a expressão do homem e o pensamento
dele?
3. Na última cena, um grupo de jovens se dirige ao futuro.
a) Observe a expressão corporal deles. O que ela
transmite?
b) Caracterize o lugar para onde os jovens se
dirigem.
c) Todos os jovens apresentam nas costas um sinal.
Que tipo de sinal é esse, e o que ele representa?
4. Tanto o cartum de Quino quanto o texto de Ignácio de Loyola
Brandão abordam o tema do jovem e da sucessão das gerações.
a) Na segunda cena, o homem do cartum faz referência
a uma fé que sempre lança os jovens à frente. De acordo com o texto de Loyola,
o jovem atual tem essa força? Justifique sua resposta.
b) No cartum de Quino, todos os jovens fazem
movimentos semelhantes e caminham para a mesma direção, como se não tivessem
autonomia ou como se fossem robôs. Qual das frases abaixo tem relação com esse
aspecto do cartum?
• “Namoram, telefonam sem parar, pedem aos pais um
cigarro para experimentar”
• “Na permissividade atual, neste final de século do
sim, estas angústias se complicaram extremamente para os adolescentes e
jovens.”
• “Nem existem sonhos ou utopias, o que se quer é
ter dinheiro, status, vida confortável.”
c) Em relação ao jovem de hoje e ao futuro da
humanidade, o cartum de Quino apresenta uma visão mais otimista ou mais
pessimista que o texto de Loyola? Justifique sua resposta.
Trocando ideias
1. Você é o jovem de hoje, retratado tanto na crônica de Loyola
quanto no cartum de Quino. Você acha que sua geração é apática, só quer ter
dinheiro, status e vida confortável?
2. O texto opõe dois modelos de educação familiar, um tradicional e
outro moderno. Você acha que a educação que vem recebendo dos seus pais se
assemelha à que é descrita pelo narrador como o modelo atual? Explique.
3. Na sua opinião, os pais devem estabelecer alguns limites para o
jovem? Por quê?
4. O narrador dá o exemplo do pai liberal que dá um cigarro ao filho.
Você acha isso certo? Por quê?
5. Tanto o texto de Loyola quanto o cartum de Quino expressam o ponto
de vista de que o jovem de hoje está perdendo sua força transformadora. Dê sua
opinião: O jovem atual é solidário e participante? Comente.